20 de fevereiro de 2019

Leer en español | Read in English

São Paulo – Quase ao final da instalação da Comissão Arns de Direitos Humanos, o presidente do colegiado, o ex-ministro Paulo Sérgio Pinheiro, pediu que todas as entidades que atuam na área “mantenham-se em estado de alerta” para combater o autoritarismo e a violência. “O momento do Brasil é crítico“, afirmou Pinheiro.

“Conquistas postas em xeque aprofundam um processo de ‘desdemocratização'”, acrescentou, enfatizando o caráter plural do colegiado, que tem 20 fundadores (confira os integrantes ao final do texto). “A Comissão não tem partido. Não somos uma frente política”, lembrou, ao manifestar a preocupação de se contrapor “aos horrores presentes”.

Os discursos não citaram explicitamente o governo Bolsonaro, mas muitos fizeram referências claras ao que apontam como ameaça real de retrocessos políticos e institucionais, citando a Constituição e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que em 2018 completaram 30 e 70 anos, respectivamente.

A procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, por exemplo, cunhou o termo “necropolítica” ou “tanatopolítica”: “Há de fato uma gestão da vida coletiva que se organiza a partir da morte”. Deborah citou o decreto sobre armamento e o projeto de lei do governo que “hiperdimensiona o Direito Penal”, falou em “certa leniência com a tortura” e apontou um “discurso muito forte da autorização para matar”.

Também lamentou, como outros, a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar. Ao destacar a existência de uma Carta que apostou na igualdade, acrescentou que “já estamos vivendo um regime que eu diria quase de ruptura com essa Constituição”.

 

Agressão a direitos humanos
O decano do grupo, o também ex-ministro José Gregori, responsável pela leitura do estatuto e pela instalação formal, reforçou a característica da Comissão Arns, com sua “multiplicidade de visões” e que pode comportar, inclusive, adversários políticos. “Cada um terá sua militância partidária, seus julgamentos históricos, suas preferências. Mas quando o presidente Paulo Sérgio Pinheiro abrir a sessão, aí os adversários políticos se tornam parceiros.”

Para Gregori, a Comissão é “auto-explicativa”, diante do momento que vive o país, com os direitos humanos sendo “agredidos, distorcidos, atacados, e não se diga que foi apenas com palavras”. Segundo ele, qualquer Estado democrático de direito precisa ter dois orçamentos: um econômico-financeiro e outro “institucional, democrático e civilizatório”.

“Não podemos falhar na defesa desse patrimônio”, completou, lembrando sua condição de ex-estudante da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), no Largo São Francisco, centro paulistano – a Comissão foi instalada, nesta quarta-feira (20), na histórica Sala dos Estudantes da instituição.

O objetivo declarado da Comissão Arns “é dar visibilidade e acolhimento institucional a graves violações da integridade física, da liberdade e da dignidade humana, especialmente as cometidas por agentes do Estado contra pessoas e populações discriminadas, como negros, indígenas, quilombolas, pessoas LGBTs, mulheres, jovens, comunidades urbanas ou rurais em situação de extrema pobreza”.

Segundo o jurista Belisário dos Santos Júnior, o grupo começou a ser formado no ano passado, após seguidas reuniões. “Diante de tantos casos de ódio, (os participantes) entenderam que era preciso continuar juntos”, lembrou, considerando que a força da Comissão vem justamente de sua diversidade.

 

Valores fundamentais
Ex-presidenta da Comissão Justiça e Paz, da Arquidiocese de São Paulo, referência no ativismo dos direitos humanos a socióloga Margarida Genevois tornou-se presidenta de honra da Comissão Arns, referência ao cardeal-arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns, que ela conheceu bem. Prestes a completar 96 anos, em março, ela falou em “articulações” para implementar retrocessos e defendeu a preservação de valores fundamentais da sociedade, citando os “mortos e desaparecidos de Brumadinho”, a recente chacina no Rio de Janeiro e o que chamou de “cotiano de violência no país”.

“Vejo companheiros de tantos anos e também muitos jovens”, disse Margarida, dirigindo-se à plateia. “Nós precisamos de vocês”, acrescentou, pedindo apoio dos estudantes. “Poderemos sentir medo e insegurança, mas sempre lembraremos da voz firme dizendo: coragem!”, concluiu Margarida, lembrando de um brado constante do cardeal, que morreu em 2016.

Para o presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos, Leonardo Pinho, o país vive “tempos de negação, de afronta à democracia” e precisa de “uma democracia de alta intensidade”. Ele também fez referência a “autoridades públicas tentando negar e reescrever a história do país”.

Outro convidado da sessão de abertura, o ativista Toni Reis, primeiro presidente da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), fez a citação mais explícita a um integrante do governo, no caso a ministra Damares Alves: “Nossas cores são muito mais que o azul e o rosa. A gente tem de compor esse arco-íris livre”. Em “tempos de banalização do mal”, ele defendeu o entendimento. “Diálogo não é adesão, constrói pontes e derruba muros. Vamos dialogar com todo o campo progressista”, pediu, acrescentando também ser contra “a destruição da família”, mas ampliando esse conceito.

Reis lembrou o julgamento, em curso nesta quarta, de ações que pedem a criminalização da homofobia. “Somos a única minoria que não tem proteção jurídica específica”, afirmou. Depois do ato, o ativista seguiria para Brasília, a fim de acompanhar a sessão do Supremo Tribunal Federal (STF).

 

“Nunca se matou tanto”
O advogado Rafael Custódio, da ONG Conectas afirmou que “nunca se prendeu tanto, nunca se matou tanto no Brasil” e falou em “nova onda obscurantista” no país. E acrescentou que o país tem “um dos sistemas de segurança mais letais do mundo”, além de sistema criminal “seletivo”. Integrante da Comissão Arns, o reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, José Vicente, citou os snipers, atiradores de elite defendidos, por exemplo, pelo governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel. “Não queremos fuzis. Queremos escola”, afirmou, citando a “onda tenebrosa que ameaça a sobrevivência de todos nós”.

Presidenta do Centro Acadêmico XI de Agosto, a estudante de Direito da USP Laura Arantes destacou o simbolismo do local de instalação da Comissão Arns, a chamada Sala dos Estudantes, com um cutucão à instituição. Segundo ela, enquanto os alunos se reuniam ali para discutir a resistência a ditadura, “na sala dos professores desta casa era escrito o Ato Institucional número 5”.

Vice-presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Luiz Viana foi um dos últimos oradores – e também falou em tempos “sombrios”. “Não há democracia se não há eficácia real de direitos humanos, e não há direitos humanos sem democracia”, afirmou. “Nunca sociedade violenta e excludente, só podemos esperar exclusão e violência”.

Já no início da tarde, quando o ato terminou, o jurista e professor emérito Fábio Konder Comparato comentava, com humor, as circunstâncias históricas de criação do colegiado. “Eu não esperava essa espécie de ressurreição, voltando a nos animar depois do desastre político. Acho que é fundamental trabalhar com a juventude”, acrescentou o advogado, que completará 83 anos em outubro. Ele acredita em reação aos retrocessos: “Acho que nós vamos reagir”.

 

Conheça os integrantes da Comissão Arns:

* Paulo Sérgio Pinheiro, presidente da Comissão, professor e pesquisador, foi secretário de Direitos Humanos (governo Fernando Henrique Cardoso) e comanda comissão independente da Organização das Nações Unidas (ONU) de investigação sobre a Síria
Margarida Genevois, presidenta de honra, socióloga e ex-presidente da Comissão Justiça e Paz, da Arquidiocese de São Paulo
Ailton Krenak, líder indígena e ambientalista
André Singer, cientista político e jornalista, foi porta-voz da Presidência da República durante o governo Lula
Antônio Claudio Mariz de Oliveira, advogado criminal, ex-secretário estadual da Segurança Pública em São Paulo
Belisário dos Santos Jr., jurista, ex-secretário estadual de Justiça e Defesa da Cidadania, membro da Comissão Justiça e Paz
Claudia Costin, professora, ex-ministra da Administração Federal e Reforma (governo Fernando Henrique Cardoso), ex-secretária estadual de Cultura em São Paulo e ex-diretora de Educação do Banco Mundial
Fábio Konder Comparato, jurista e professor emérito da Faculdade de Direito da USP
José Carlos Dias, jurista, ex-ministro da Justiça (governo Fernando Henrique), ex-secretário estadual da Justiça em São Paulo e ex-presidente da Comissão Justiça e Paz
José Gregori, jurista e ex-secretário nacional de Direitos Humanos (governo Fernando Henrique)
José Vicente, advogado, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares
Laura Greenhalgh, jornalista
Luiz Carlos Bresser-Pereira, economista e professor, ex-ministro da Fazenda (governo Sarney), ex-ministro da Administração Federal e Reforma e da Ciência e Tecnologia (ambos no governo FHC)
Luiz Felipe de Alencastro, professor e historiador
Maria Hermínia Tavares de Almeida, cientista política, professora e pesquisadora
Maria Victoria Benevides, socióloga e professora universitária
Oscar Vilhena Vieira, professor e cientista político
Paulo Vannuchi, jornalista, ex-ministro dos Direitos Humanos (governo Lula) e e ex-integrante da Comissão Interamericana de Direitos Humanos
Sueli Carneiro, filósofa e ativista do movimento negro, diretora do Geledés – Instituto da Mulher Negra
Vladimir Safatle, professor e filósofo

 

Confira o manifesto de lançamento:

Comissão de Defesa dos Direitos Humanos D. Paulo Evaristo Arns

A história brasileira é marcada por graves violações dos direitos humanos mais fundamentais. Apesar dessa violência nunca ter sido objeto da devida atenção por parte do país, houve inegáveis avanços sob a égide da Constituição de 1988. Não podemos permitir, agora, que ocorram retrocessos.

O desrespeito aos direitos humanos, cuja incidência pode crescer graças às características do processo político recente, atinge de maneira cruel os setores mais discriminados da população, com suas características de vulnerabilidade econômica, social, de raça, religiosa, de orientação sexual e de gênero.

Em outros momentos difíceis, o Brasil percebeu a importância dos organismos de defesa de direitos humanos compostos de forma plural por membros da sociedade civil. Tais entidades demonstraram, mesmo em conjunturas dramáticas, a vigilância necessária para dar visibilidade e processamento jurídico a crimes cometidos por agentes do Estado.

A instauração da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos D. Paulo Evaristo Arns – Comissão Arns quer ajudar na proteção da integridade física, da liberdade e da dignidade humana dos que possam estar ameaçados neste novo período duro da história brasileira.

Com a presença de participantes de entidades anteriores, pretendemos recolher a experiência do passado com vistas a preservar o futuro. Este o motivo, também, de homenagear o Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns (1921 – 2016) que, acima de diferenças religiosas, políticas, sociais e ideológicas, foi capaz de juntar forças variadas em favor dos direitos humanos na hora mais difícil do regime ditatorial instaurado em 1964.

A partir da reunião de velhos e novos defensores da dignidade humana, o objetivo da Comissão Arns será o de contribuir para dar visibilidade e seguimento jurídico, em instâncias nacionais e internacionais, a casos de graves violações dos direitos humanos. A comissão vem para trabalhar de forma articulada com os inúmeros organismos de defesa e pesquisa em direitos humanos já existentes no Brasil.

A unidade plural de todos os que sustentam a inviolabilidade dos direitos humanos, no quadro dos tratados e convenções internacionais que o Estado brasileiro se obrigou a respeitar, é o nosso norte e fundamento comum.

 

São Paulo, 20 de fevereiro de 2019.
70 ANOS DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS
30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO DE 1988
Rede Brasil Atual | Foto: reprodução Facebook /Celeiro de Memória