18 de setembro de 2018

Considerado em 2009 pelo CEO do The Rothkopf Group e colunista da revista Foreign Policy, David Rothkopf, como “o melhor chanceler do mundo”, o ex-ministro das Relações Exteriores (de 1993 a 1994 e de 2003 a 2010) e da Defesa (2011-2014) Celso Amorim fez a revisão final do programa para a política externa da candidatura de Fernando Haddad (PT) à presidência da República, além de ser de uma referência para o próprio Ciro Gomes, que afirmou recentemente em entrevista que “qualquer palavra menor do que extraordinário e brilhante não será justo com o que ele (Celso Amorim) fez no governo Lula”. Ele chegou a ser cogitado pelos dirigentes petistas para ser vice na chapa inicial encabeçada pelo ex-presidente Lula. Nesta entrevista exclusiva, o diplomata formado no Instituto Rio Branco e pós-graduado pela Academia Diplomática de Viena fala sobre os rumos da política externa brasileira.

ComunitàItaliana — O governo Lula foi muito marcante na relação Sul-Sul em seu governo. Essa política vai continuar em um eventual governo Fernando Haddad?
Celso Amorim — Nós tivemos uma política externa também com países europeus. Pode haver essa impressão, de que demos mais atenção às relações Sul-Sul, mas isso se deve ao fato de que elas praticamente não existiam. Fizemos uma parceria estratégica com países da União Europeia, que o bloco propôs, naquela época, com cinco ou seis países. Tivemos relações intensas com os Estados Unidos. Nós diversificamos as relações. A relação com a Rússia, por exemplo, você pode enquadrar no eixo Sul-Sul por causa dos BRICS.

CI — A impressão que temos é que o governo Dilma Rousseff não deu muita ênfase às relações externas, ao contrário do governo Lula. Houve uma mudança na política?
CA — Atualmente, você não ouve falar de nada de política externa; praticamente não há política externa, a não ser algumas declarações absurdas sobre a Venezuela. Mas, durante o governo Dilma, a política externa do governo Lula não mudou. Pode ter sido menos intensa, mas cada pessoa tem a sua personalidade e se dedica mais a tal assunto. Para se fazer justiça, o banco dos BRICs foi concretizado durante o governo Dilma, em reunião em Brasília. Mas no PT há uma perfeita consciência de que a política externa é absolutamente fundamental, tanto que logo o primeiro capítulo do programa é soberania, política externa e defesa. Lula sempre transmitiu essa importância. Não ter política externa já é ter uma política externa. Significa permitir, digamos assim, que as forças de mercado sejam dominantes. Francamente, raras vezes vi um período tão fraco, desde o governo militar. Na época de Fernando Henrique, havia mais personalidade do que hoje. No período do Lula, nem se fala. Hoje o Brasil está apagado. As pessoas que me perguntam no exterior: “Onde está o Brasil?”

CI — Como o senhor avalia o atual papel do Brasil na América Latina?
CA — Há um recuo imenso, e isso traz consequências, pois o Brasil exerce um papel importante na integração do continente, e não só por ser grande. Veja a Austrália, que tem quase o tamanho do Brasil e fica isolada. Nós fazemos fronteira com 10 países. Somos o terceiro país do mundo em fronteiras. Isso faz com que tenhamos muita influência. E como o governo brasileiro não faz praticamente nada, a não ser atacar a Venezuela, enfraquece a Unasul. A Colômbia saiu da Unasul e já está se associando à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Tudo isso dificulta não só a integração econômica como também a paz. O atual chanceler, quando perguntado se o Brasil podia participar de uma mediação na Venezuela, disse que não, pois o “Brasil tem partido”. É curioso, pois nós éramos acusados ser ideológicos. E Lula dialogava com os EUA e com a oposição. Sempre trabalhamos na mediação de conflitos entre Colômbia e Equador; entre Venezuela e Colômbia, por exemplo.

CI — Por que o acordo entre o Mercosul e a União Europeia ainda não saiu?
CA — Esse acordo é muito complexo. No início da negociação, o primeiro passo foi dado durante o governo Itamar Franco, do qual eu fui o chanceler. Na época, nossa ideia era fazer uma diversificação, pois a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) parecia inevitável. Queríamos uma relação equilibrada para não ficar tudo nas mãos de um único país. Porém, no decorrer da negociação, as dificuldades foram aparecendo, muitas delas por conta da UE, na agricultura. Não sou necessariamente contra o acordo. Porém, não sou a favor de um acordo feito às pressas, feito para se dizer que tem, num momento em que estamos sujeitos a uma onda neoliberal. O país fica exposto a fazer mais concessões, apenas para mostrar que está agindo. É um acordo arriscado que deve ser feito em longo prazo e que exige prazo de adaptação à nova realidade. Quando ela foi lançada lá atrás o livre comércio era palavra de ordem no mundo inteiro. Acho que nós temos que procurar um acordo equilibrado que leve em conta a crise de 2008, o fato de a OMC não ter conseguido concluir a rodada de Doha e os subsídios agrícolas europeus não foram reduzidos nem eliminados.

CI — Porém, membros do governo Temer afirmaram várias vezes que o “acordo com a UE nunca esteve tão próximo”.
CA — É que eles querem mostrar alguma coisa. Não podem mostrar nada, está tudo se desfazendo. Expulsaram a Venezuela do Mercosul, o que só piorou a situação venezuelana, e o Brasil está inativo nos BRICS.

CI — Como foi a visita ao papa Francisco em agosto?
CA — Estive com o papa durante uma hora acompanhado de um ex-ministro argentino e de um ex-ministro chileno, mas o assunto principal era o Brasil. O simples fato dele ter recebido um ex-chanceler do Lula e presidente do comitê em defesa da democracia e em solidariedade ao ex–presidente diz tudo. É um chefe de Estado muito ocupado e bem informado.

CI — O não cumprimento da recomendação do comitê de direitos humanos da ONU em relação aos direitos eleitorais do ex-presidente Lula tem algum reflexo para o Brasil no exterior?
CA — A decisão da ONU não é uma recomendação, é uma decisão. O termo que o próprio comitê usa é “o comitê requer”. Não é nenhum órgão administrativo. É o órgão responsável para acompanhar a observância do pacto internacional de direitos civis e políticos, ratificado pelo Brasil. Isso afeta a credibilidade do país, pois um país que não cumpre tratados e obrigações internacionais não é levado a sério. Investidores vão pensar muito antes de investir aqui, pois não se sabe se cumpre com suas obrigações. Está na área de direitos humanos, mas pode estar envolvido em outras áreas.

CI — O incêndio no Museu Nacional traz consequências para as relações do Brasil?
CA — Isso é péssimo para a nossa própria moral e autoestima, por ser um país que deixa seu passado e sua memória arder em chamas. A restrição orçamentária da universidade se agravou muito com a PEC dos gastos; não há como diminuir a responsabilidade do governo. Quando você corta recursos, uma das primeiras áreas é a cultura, aí as consequências podem ser trágicas.

CI — O que o senhor acha do caso Cesare Battisti?
CA — Acho que poderia ter havido outra solução. Tem o lado do direito humano individual dele que tinha que ser respeitado. O caso é complexo e envolveu várias entidades aqui no Brasil. De qualquer forma, acho que isso não pode atrapalhar a relação entre os dois países. Fiz uma visita à Itália após o episódio e senti que o ministro da Defesa italiano tinha consciência discussão, mas ele achava que tinha que se aproximar do Brasil. Não entrei a fundo na questão. O STF tomou uma decisão e enviou a decisão final para o Executivo, mas a questão já estava encaminhada em certo sentido. O Brasil sofreu pressões e ouvimos certas expressões, do tipo “o Brasil tem que fazer isso”, “o Brasil tem que fazer aquilo”. Mas entre países deve-se conversar de igual para igual, diferente da ONU, por exemplo, que tem uma autoridade global.

CI — O que o senhor acha da tendência da política europeia de fechar fronteiras e o crescimento da extrema-direita no continente europeu?
CA — Isso preocupa muito. O Brasil tem uma tradição de receber imigrantes e refugiados. Fomos um dois primeiros a receber os clandestinos que estavam no Iraque. Nós fizemos um acordo com a ONU que permitiu que palestinos que estavam lá viessem para cá. Acho que temos que ter uma visão em que o lado humano predomine sobre interesses egoístas. Grande parte dos imigrantes africanos vem das ex-colônias europeias, mas reconheço que pode ser um problema. Para evitar isso, porém, é preciso ter uma relação econômica justa. Todos preferem viver em sua terra, desde que tenham uma vida decente. O problema é que eles não têm, sem citarmos as guerras. Estamos vivendo um momento em que os egoísmos estão sendo muito afirmados. O presidente norte-americano exerce essa influência e certamente não é um bom exemplo… Também no Leste europeu há países com presidentes que deram declarações anti-humanitárias, contrárias à tradição humanitária da União Europeia. Há maneiras e maneiras de cuidar da soberania dos países. Chamar o comitê da ONU de “comitezinho” ou dizer que “não vamos nos curvar diante da ONU” significa dizer: “não vamos respeitar os tratados internacionais assinados pelo Brasil”.

CI — O ex-presidente Lula gostava de visitar a Itália?
CA — Lula já esteve várias vezes na Itália. O PT tem excelente relação com os políticos democratas e uma ligação tradicional e histórica com a Itália. Do ponto de vista cultural e humano temos boas e intensas relações. Lula tem muitos amigos lá, como o (ex-primeiro-ministro) Massimo D’Alema, por exemplo; eles têm uma amizade há muito tempo. E quem não gosta de comida italiana e de apreciar a beleza da Itália, quem não tem boas memórias? Como ministro da Defesa, pude constatar que os pracinhas que lutaram lá contribuíram para as fortes relações com o Brasil.

 

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