1 de novembro de 2018

A votação do Projeto de Lei (PL) 272, de 2016, que pretende ampliar a abrangência da Lei Antiterrorismo, foi adiada na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado. Nesta quarta-feira, 31 de outubro, os parlamentares decidiram pela convocação de uma audiência pública, solicitada pelo senador Lindbergh Farias (PT/RJ), com especialistas sobre o tema, antes da proposta passar para a apreciação. De acordo com o presidente da CCJ, senador Edson Lobão (MDB/MA), a audiência deve ser realizada antes do fim de novembro de 2018.

O PL, de autoria do senador Lasier Martins (PDT/RS), pretende “disciplinar com mais precisão condutas consideradas como atos de terrorismo”. Para tal, deve incluir o conteúdo de alguns trechos que foram retirados da proposta inicial da Lei Antiterrorismo. Na época em que foi sancionada por Dilma Rousseff (PT), em 16 de março de 2016, a ex-presidenta vetou partes a fim de evitar a criminalização de manifestantes e movimentos sociais.

Na justificativa para a proposição, Martins afirma que os vetos de Rousseff tornaram a legislação “inócua”. Para ele, a então presidente, “de maneira equivocada e pouco informada a respeito do cenário internacional, vetou certos dispositivos que, em nosso entendimento, são fundamentais no tratamento do tema. É correto, aliás, afirmar que a então presidente mutilou a Lei Antiterrorismo e, assim, tornou-a, em aspectos fundamentais, inócua”. Parte do PL prevê atos com motivação “política, ideológica e social” e aqueles que tendem a “coagir governo” a “fazer ou deixar de fazer alguma coisa, por motivação política, ideológica ou social” como crimes de terrorismo.

Na Câmara dos Deputados, outro projeto de lei semelhante segue em tramitação. O PL 5065, também de 2016, de autoria do deputado e delegado Edson Moreira (PR/MG), prevê a tipificação de atos de terrorismo por motivação ideológica, política, social e criminal. A proposta está na Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado (CSPCCO).

Ao jornal O Globo o relator do projeto, o senador Magno Malta (PR-ES), que também é companheiro e defensor de Jair Bolsonaro (PSL), acusou o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) de serem terroristas. “Eles estão com medo porque o que eles fazem é terrorismo mesmo e têm de ser punidos”, afirmou. No dia 21 de outubro, em transmissão ao vivo em uma manifestação na Avenida Paulista, Bolsonaro disse aos que chamou de “bandidos do MST e bandidos do MTST” que suas “ações serão tipificadas como terrorismo”. “Vocês não levarão mais o terror ao campo ou às cidades. Ou vocês se enquadram e se submetem às leis ou vão fazer companhia ao cachaceiro lá em Curitiba”, declarou aos seus apoiadores referindo-se ao ex-presidente Lula.

O que está em jogo?
Segundo Natália Szermeta, coordenadora de aproximadamente 55 mil famílias do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) em 13 estados brasileiros, a ampliação da Lei Antiterrorismo e outros projetos que também vão na linha de criminalização de movimentos sociais não são um ataque somente aos últimos, mas à sociedade inteira. Isso porque a alteração visa qualquer manifestação que leve à “desordem” ou a um questionamento ao governo.

“Ao nosso ver, a medida é inconstitucional, fere o direito de manifestação e de discordância. Isso é típico de um governo autoritário que obviamente tipifica os movimentos sociais como terroristas ferindo nosso direito de lutar. As pessoas se organizam nos movimentos exatamente por uma ausência do Estado em garantir direitos”, afirma Szermeta.

Não é o primeiro projeto do tipo que ganha espaço no Congresso Nacional ou no Executivo durante o governo de Michel Temer. Para a coordenadora do MTST, isso não é à toa. Para ela, aparentemente “Temer está se movimentando desde que Bolsonaro foi eleito, dando gestos para contribuir com o próximo governo. O próximo presidente é, na prática, a continuidade do que tem de pior no governo atual”.

A ampliação da Lei Antiterrorismo pode ser justaposta em uma linha histórica na qual se encontram as Jornadas de Junho, as manifestações contra a realização da Copa do Mundo no País e a ascensão da tática black bloc por manifestantes. De acordo com Szermeta, o Brasil passa por uma mudança desde 2013 que se reflete no esgotamento de uma política de conciliação demasiadamente exaurida pelos governos petistas. “Não se aprofundou estruturalmente a democracia brasileira, o que, nos momentos de crise, abriu as portas para o que se tem de mais reacionário no Brasil”, diz. Nessa seara, “aprofundaram o Código Penal para mirar cada vez mais uma parcela da população como inimiga brasileira, lamentavelmente”.

Para Cristiano Maronna, advogado e presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), a tentativa de ampliação da legislação é “profundamente lamentável”. “Tentar ampliar a incidência da lei que combate o terrorismo para iniciativas próprias de lutas sociais, de movimentos sociais, é um ataque à democracia. Não se pode esquecer que a Revolução Francesa, um marco na história da conquista de direitos, é um movimento social. A Lei Antiterrorismo não pode jamais atingir lutas por direitos”, diz.

Maronna reitera que há a consolidação de uma jurisprudência que distancia as lutas por direitos sociais, como a reforma agrária, de tipificações criminosas. “Ao contrário, é o exercício de um direito tendo em vista que a democracia permite pressionar o poder público para promover alterações”. Com base nisso, o presidente do IBCCrim espera que as instituições democráticas, principalmente o Supremo Tribunal Federal (STF), “tenham coragem para colocar um freio aos ímpetos autoritários de Bolsonaro”.

Outras legislações miram movimentos sociais
Soma-se aos riscos da possível nova legislação sobre terrorismo, a Lei de Segurança Nacional de 1983, a Lei das Organizações Criminosas, o decreto de Michel Temer que institui a Força-Tarefa de Inteligência e outros projetos de lei, como a proposta do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL/SP) de criminalizar apologia ao comunismo.

Ainda que sua constitucionalidade seja ponto de discordância entre juristas, a Lei de Segurança Nacional, número 7170, aprovada dois anos antes do fim da Ditadura Militar brasileira, inclui “inconformismo político” como uma das motivações para crimes tipificados como terroristas. Assim também o é realizar propaganda “de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social” e “incitar à subversão da ordem política ou social”.

A segunda legislação, que versa sobre organizações criminosas, número 12.850, de 2013, também se aplica às “organizações terroristas, entendidas como aquelas voltadas para a prática dos atos de terrorismo legalmente definidos”.

Na mesma linha, a Força-Tarefa de Inteligência, criada pelo decreto 9.527 de outubro de 2018, tem a função de “analisar e compartilhar dados e de produzir relatórios de inteligência com vistas a subsidiar a elaboração de políticas públicas e a ação governamental no enfrentamento a organizações criminosas que afrontam o Estado brasileiro e as suas instituições”.

No todo, para Eugênio Aragão, ex-ministro da Justiça durante o segundo mandato de Dilma Rousseff, “parece que há um potencial muito forte” para que essas legislações sejam utilizadas juntas contra movimentos sociais, “dependendo da orientação política” desses movimentos. “Mas eu não tenho dúvida que nesse governo [Bolsonaro], a orientação já está mais ou menos dada”, afirma.

No próximo governo, o juiz Sergio Moro irá ocupar o cargo de Ministro da Justiça numa pasta “turbinada” que agregará Segurança Pública e parte do Conselho de Controle de Atividades Financeiras, este último subordinado hoje ao Ministério da Fazenda. Para Aragão, Moro é “capaz de fazer qualquer coisa, desde que isso seja para o bem da carreira dele”. Para isso, o juiz de Curitiba poderia, inclusive, “trabalhar contra movimentos sociais”, afirma o ex-ministro. “Ele é um sujeito inescrupuloso, ele já mostrou isso.”

Sobre o assunto, Cristiano Maronna afirma que as as legislações podem “sem dúvida”, versarem juntas contra os movimentos. “Aliás, a Força-Tarefa de Inteligência é uma espécie de AI-1 [Ato Institucional nº1], é muito perigoso que essa mistura entre militares e civis seja feita. Criou-se uma estrutura institucional que pode ser usada para reprimir a oposição. Isso seria um atentado à democracia”, declara.

Na contramão
O senador Randolfe Rodrigues (Rede), membro da CCJ no Bloco Parlamentar Democracia e Cidadania, já apresentou seu voto em separado, no qual julga o PL 272 inconstitucional. Juntam-se ao parlamentar, organizações de defesa dos direitos humanos, como Rede Justiça Criminal, Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC) e Instituto Sou da Paz.

Para Natália Szermeta, o maior desafio é construir uma frente unificada, “porque os ataques serão diversos, é uma tática que eles utilizam de desestabilização”, afirma. Entre as primeiras estratégias para “resistir” às ofensivas aos movimentos sociais, é impreterível “entender que esses ataques são coletivos e dialogar com a sociedade para mostrar que isso não é um ataque ideológico a uma minoria” e “buscar ter o máximo de unidade possível”. A segunda estratégia é “manter-se na rua, firme, não se esconder debaixo da cama. Não é a primeira vez que o Brasil passa por uma situação como essa, temos um histórico de resistência. Certamente amanhã vai ser outro dia e conseguiremos retomar os rumos de um país democrático”.

 

Justificando | Carta Capital
Arte: Caroline Oliveira