2 de agosto de 2018

Em nossa história política, Lula tornou-se um personagem catalisador de fortes emoções. Jamais desperta indiferença: uns o adulam, outros o abominam. O espectro entre os dois extremos é parcamente povoado. A ruptura política imposta por um golpe parlamentar-judiciário-midiático contra sua sucessora deixa pouca margem à racionalidade. Somos hoje uma sociedade dividida entre vilões e vítimas. A depender da maior ou menor influência exercida pela mídia comercial sobre cada um, os papéis são invertidos: ora os vilões são as vítimas, ora as vítimas são os vilões. Ninguém passa incólume por esse choque do enlevo com a bronca.

Muito menos as instituições. Fortes no mito da degeneração da política e da necessidade de saneamento da vida pública nacional, seus atores escolheram um lado. Digo “mito”, porque as opiniões sobre as causas da suposta degeneração não têm muito apego à realidade, antes reproduzem o conflito vítima-vilão, com Lula e seu partido no centro da discórdia.

O discurso de lustração política tem inegavelmente ganhadores e perdedores. Ganharam as corporações do serviço público. Ganhou o capital especulativo. Ganhou a cobiça internacional pelos ativos brasileiros. Perdeu a maioria da população, que vê definhando as políticas públicas de inclusão e redistribuição da riqueza. Perdeu a economia produtiva, beneficiada pela expansão do mercado na esteira da inclusão social. Perdeu o interesse nacional com a erosão do lugar do Brasil como player no mercado global.

Instituições judiciais e parajudiciais

O Poder Judiciário e seus periféricos (Ministério Público e polícia judiciária) estão entre os ganhadores e têm exercido um papel central na crise nacional. Seu ativismo midiático lhes conferiu protagonismo político ímpar. Mantêm-se sólidos no topo da cadeia alimentar do serviço público, prestigiadíssimos com seus altos ganhos e seu poder de coerção, que guardam nítida conexão entre si. Não há administrador e são poucos os atores parlamentares que ousam enfrentar essa máquina persecutória penal, até porque muitos têm telhado de vidro e razões de sobra para se manterem longe dela. Mas, se resistência houver, a máquina passa por cima com o supremo rolo compressor, como no caso do auxílio-moradia universalizado por provimento cautelar monocrático no STF.

Algo de muito errado aconteceu com nossas instituições judiciais e parajudiciais. Na Constituinte, lograram significativo fortalecimento para servirem de garantes da democracia e do Estado de direito. Foi-lhes confiado enorme poder para se impor sobre o Executivo. Deu-se-lhes até iniciativa legislativa em causa própria, para que ficassem distantes da disputa política e agissem altivos, sem se preocuparem com eventuais represálias.

No entanto, parece que tamanho poder e tamanha blindagem os tornaram reféns de si mesmos. O absoluto isolamento social daí decorrente fez fermentar a atuação política interna, descompromissada com o resto da sociedade. Picados pela mosca azul, não há quem os convença de que são meros servidores públicos, pagos pelos contribuintes para servirem à sociedade, e não para se servirem dela nem se porem em guerra contra sua representação política.

Não há prefeito, não há gestor de políticas públicas, não há ordenador de despesa neste país que não tenha sentido na pele a arrogância no trato com o Ministério Público. Prazos impostos com ameaças expressas de incriminação são rotina. Não existe um “por favor” nem um “obrigado” na linguagem funcional de seus agentes. Têm o rei na barriga.

Forçosamente somos levados a constatar que boa parte deles são meninos mimados da classe média. Primeiros colocados em concursos públicos de decoreba, adestrados pelos mais caros cursinhos, enquanto se preparavam sem trabalhar, cevados por papai e mamãe, que os queriam importantes, nos melhores postos da República.

Frustram-se com qualquer desafio à sua excelência. Lidam pessimamente com essas frustrações. E reagem com histrionismo. A crise não pode atingir seu bolso! Têm-se como incontestes corifeus da meritocracia. Veem no concurso que lhes permitiu a investidura o bilhete-prêmio para a felicidade. Para todo o sempre! Ninguém tasca! Reforçam essa convicção com a interpretação inflada das prerrogativas constitucionais da vitaliciedade, da inamovibilidade, da irredutibilidade de ganhos e da independência funcional, por eles erigida em verdadeira soberania funcional. Na verdade, não são excelências, são majestades!

São atores que nada devem a quem quer que seja. Nem à sociedade nem a seus atores políticos. Se Lula respeitou a autonomia orgânica do Ministério Público e não aparelhou as cortes superiores, “nada mais fez que sua obrigação”.

Eles correspondem aos burocratazinhos que, na Revolução Russa de fevereiro de 1917, só marcharam com o proletariado para não ficarem de fora, mas tentaram, até a última hora, garantir privilégios de sua condição na monarquia imperial, tornando-se os mais ferrenhos contrarrevolucionários, aliados aos cadetes em torno do general golpista Kornilov.

Manter Lula preso tem uma força simbólica enorme para nossos burocratas privilegiados. Lula preso é um troféu precioso, o prêmio que seus atores se atribuíram para ser exibido como sinal de poder. Soltar Lula, ao contrário, põe a nu o caráter mesquinho desse esforço por prestígio corporativo e significa a submissão das instituições e da burocracia à macropolítica e à soberania popular. É tudo o que essa gente não quer.

O juiz Sérgio Moro virou um herói para os nossos cadetes. É seu Kornilov. E Lula é feito Lenin preso pela falsa acusação de ser colaborador do inimigo alemão. Mas é importante lembrar que o golpe de julho de 1917 não impediu a Revolução de Outubro. Antes a precipitou.

 

O imbróglio processual de 8 de julho

A sociedade acordou naquele domingo com a estranha e incrível notícia de que Lula estava livre, pronto para cair de cabeça na campanha presidencial. A ordem de soltura tinha sido dada pelo desembargador Rogério Favreto, no plantão do TRF4, com base em um pedido de habeas corpus da autoria de três deputados federais do PT. Almejavam forçar o Judiciário a permitir que Lula promovesse sua pré-campanha em condição idêntica à de seus adversários. Pedidos para liberar Lula para dar entrevistas e participar de debates já dormitavam havia mais de um mês na mesa da juíza responsável pela execução penal antecipada imposta ao candidato. A juíza não decidia e criava, com isso, intolerável desigualdade entre os disputantes na eleição presidencial.

O alvará de soltura chegou às 9h46 à Superintendência da Polícia Federal, onde Lula está preso. A reação por parte do establishment burocrático-judicial foi de pânico. Foi dito que Sérgio Moro, cidadão de folga, que, em versão não confirmada, estaria em Portugal, quase teve uma síncope e disparou telefonemas para todo canto, inclusive para a Polícia Federal, “ordenando-lhe” que não soltasse Lula enquanto o relator dos feitos da Lava Jato no TRF4, desembargador Gebran Neto, não fosse inteirado da situação. Deixou a polícia atordoada e paralisada. Somente às 12h colocou por escrito sua “determinação” de não dar cumprimento à ordem de soltura do desembargador Rogério Favreto. Tudo isso está devidamente registrado no livro de ocorrências do plantão.

O incidente escandaloso, tanto por sua gravidade como pelo inusitado, clama por correção disciplinar, no mínimo, contra o folguista usurpador da função judicante. Sérgio Moro, àquela altura, não detinha jurisdição – o poder legal de decidir as causas judiciais em curso – para qualquer medida que impedisse a soltura de Lula.

No entanto, ainda que estivesse regularmente exercendo a função judicante – que não era o caso –, o juiz de piso não podia dar contraordem a uma decisão de um desembargador do tribunal ao qual se subordina, sob a pífia motivação de que o desembargador plantonista não teria “competência” para a soltura de Lula. Se a moda pegar, qualquer juiz de primeiro grau, insatisfeito com a reforma de suas decisões, passará a determinar a obstaculização de sua execução!

Pois bem: o “despacho” do cidadão de folga foi recebido também pelo desembargador Gebran Neto, igualmente afastado do exercício durante seu merecido descanso dominical. Enfurecido, tomou o inexistente ato de Moro como fundamento suficiente para avocar o habeas corpus do colega e declarar inválida sua decisão de soltar Lula. Ignorou a impossibilidade de dois magistrados serem igualmente competentes para um mesmo processo. Judicatura não é bufê de cafeteria, onde se escolhe o petisco que vai para o prato.

Sobre a jurisdição de Rogério Favreto não pode haver dúvida. Decorre do ato que o nomeou plantonista e do regimento que lhe atribuiu competência para conceder medidas liminares em habeas corpus. Gebran, por sua vez, agiu de forma ilegal, usurpando poder do colega. Pior: fez isso baseado em procedimento imaginário que chamou de “consulta” do juiz folguista, sem forma nem conteúdo processual (“consulta” é figura inexistente no direito processual). Despido o subscritor da “consulta” do poder jurisdicional, esse ato nem nulo era. Era muito menos um ato formalmente inexistente, incapaz de se prestar à provocação de uma manifestação judicial. Um não ato.

Rogério Favreto reafirmou sua jurisdição e estabeleceu o prazo improrrogável de uma hora para o cumprimento da ordem de soltura. A Polícia Federal, contudo, fez ouvido de mercador e enrolou para não cumprir a ordem, alegando haver duas ordens contraditórias. Enquanto isso, o presidente do TRF, Carlos Eduardo Thompson Flores, alarmado com a balbúrdia, entrou em contato verbal com o ministro Raul Jungmann, da Segurança Pública, e solicitou não cumprir a ordem do desembargador plantonista, porquanto iria dirimir o conflito entre os colegas.

Thompson Flores é outro desembargador que se desempenhou com inadmissível ativismo ao dizer que este teria invadido a competência da 8ª Turma do tribunal ao redecidir matéria ali já julgada. Poderia dizer qualquer coisa, menos esta: a matéria sobre a participação de Lula na campanha presidencial era processualmente inédita e não fora decidida ainda em nenhuma instância.

A ministra Laurita Vaz fechou a confusão com chave de ouro. Na terça-feira seguinte, exarou despacho no plantão do Superior Tribunal de Justiça, batendo na tecla de que o habeas corpus despachado por Favreto não continha fato novo – a pré-campanha de Lula –, pois o fato de Lula ser pré-candidato não seria novidade…

Para leigos, talvez seja importante explicar. Não é o fato que deve ser novo, mas o thema decidendum – o assunto posto a debate –, pois a questão temporal não apaga a gravidade da ilegalidade denunciada. Não é porque deixei de levar ao tribunal um fato grave ao tempo em que era recente que deixo de ter o direito de levá-lo agora. O tempo não apaga o abuso. Se fosse assim, não precisaríamos nem mais levar a juízo os criminosos do Holocausto, porque o fato já é conhecido por todos há mais de setenta anos!

Os limites temporais, em direito, são dados pela prescrição, quando um fato tenha se encerrado, completado. A lei então prescreve o lapso de tempo durante o qual se pode levar aquele acontecimento passado à apreciação de um juiz. Mas evidentemente isso não vale para a violência ainda em curso: a denegação do direito de Lula fazer pré-campanha como todos os outros pré-candidatos! É irrelevante, para levar ao Judiciário, se o fato da candidatura de Lula é notório ou não. Não é a notoriedade que desqualifica a novidade da matéria posta à decisão da corte.

O debate levado à apreciação do desembargador de plantão era efetivamente novo e não implicava revisão dos mesmos fundamentos de pedidos já julgados! O que poderia ser discutido, em tese, era a urgência do pleito de pré-campanha a ponto de ser levado ao plantão do TRF. Mas juízes são independentes até para avaliar a urgência, ou não, de um provimento judicial. Não cabe a outros juízes atropelar o competente para desfazer publicamente essa avaliação.

O pior de tudo nesse episódio desmoralizante para o Judiciário brasileiro é que todo barulho seria rigorosamente desnecessário. Fosse cumprido o rito processual normal, o habeas corpus, depois de liberado Lula, seria encaminhado na segunda-feira à decisão do relator prevento, Gebran Neto, que poderia, sem nenhum estrépito, revogar a ordem de livramento e depois submeter a matéria ao julgamento da turma. Com serenidade e altivez. Mas não. O desespero de Moro, típico de um sméagol do romance épico Senhor dos anéis, prestes a perder seu precious, não condisse com o distanciamento sentimental que se exige do magistrado na relação com os feitos sob sua responsabilidade. Talvez nem sequer se lembrasse de que a jurisdição brasileira se exerce no território nacional, e não fora dele.

 

Magistrado maiúsculo

Do que aqui foi relatado e deveria fazer corar de vergonha qualquer jurista brasileiro sério, pode-se concluir, independentemente do juízo sobre o acerto ou a falha da decisão que proferiu, que o único ator que merece ser tratado, nesse palco, de Magistrado, com “M” maiúsculo, é o desembargador Rogério Favreto, que heroicamente defendeu sua jurisdição e não baixou a cabeça à prepotência ignorante.

Revelou-se Favreto um raro espécime no Judiciário, motivo de alento para todos aqueles que querem um Brasil melhor: mesmo tendo sua jurisdição atacada por seus colegas, que coonestaram a empáfia, e pelo topete do folguista Sérgio Moro, ele mostrou, com sua resistência, que, para desautorizá-lo, não basta passar sobre ele a patrola da arrogância e da bronca. É preciso seguir o devido processo legal, agindo com imparcialidade e respeitando a publicidade dos atos jurisdicionais, não satisfeita com telefonemas disparados nas costas dos impetrantes e do paciente, numa verdadeira subversão do republicanismo. Ficou patente, para a sociedade, graças à envergadura de Favreto, que Lula é, tal e qual a jurisdição sequestrada pelo TRF, um cativo privado da sanha corporativa. Até que – quiçá – o STF diga melhor!

 

Wadih Damous, advogado e deputado federal (PT-RJ), foi presidente da OAB-RJ (2007-2012). É graduado em Direito pela Uerj e mestre em Direito Constitucional e do Estado pela PUC-Rio.