1 de março de 2021
O ex-ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio Moro, que foi convidado a integrar o governo de Jair Bolsonaro ainda durante as eleições presidenciais de 2018. Foto: Carolina Antunes/PR

O Brasil está passando por várias crises ao mesmo tempo – a situação catastrófica da saúde, a frágil economia e a extrema polarização política. Podemos agora acrescentar a corrupção do sistema judicial à lista. Não tinha de ser assim. Os brasileiros tinham grandes esperanças há sete anos, quando um jovem magistrado chamado Sergio Moro lançou uma operação anticorrupção chamada Lava Jato.

De um dia para o outro e com o apoio do sistema judicial e da mídia, Moro e os promotores encarregados da operação aparentemente salvariam o Brasil. E em pouco tempo seus esforços produziram resultados impressionantes: milhões de dólares foram recuperados, e vários políticos e empresários de alto escalão foram presos, culminando na prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em abril de 2018.

A operação Lava Jato provou que a Justiça poderia acabar com a corrupção endêmica no Brasil ou foi apenas um conto de fadas que encobriu outros interesses políticos? Nas últimas semanas, o lado obscuro da Lava Jato foi exposto, e um sentimento de profundo desencanto com a chamada República de Curitiba, nomeada em homenagem à capital do Paraná, onde a força-tarefa estava sediada, se espalhou por todo o país. A operação Lava Jato foi vendida como a maior investigação anticorrupção do mundo, mas se tornou o maior escândalo judicial da história do Brasil. Quando a força-tarefa foi dissolvida, no dia 1º de fevereiro, quase ninguém foi para as ruas ou para as redes sociais para lamentar o seu fim.

Ao invés de erradicar a corrupção, alcançar maior transparência na política e fortalecer a democracia, a agora notória operação Lava Jato abriu caminho para Jair Bolsonaro chegar ao poder depois de eliminar seu principal rival, Lula da Silva, da corrida presidencial. Isso contribuiu para o caos que o Brasil está vivendo hoje.

Os procuradores da Lava Jato atribuíram os seus êxitos ao uso de métodos inovadores (em particular, o papel das delações premiadas) que permitiram aos tribunais agir rapidamente. Eles citam os 1.450 mandados de prisão, 179 processos penais e 174 penas de prisão resultantes desta inovação. No entanto, o vazamento de diálogos de um aplicativo de mensagens revelou que, ao invés de seguir o devido processo legal, Moro utilizou o aplicativo como um canal para se comunicar com a equipe de acusação e desenvolver estratégias sobre quais acusações deveriam recair sobre o ex-presidente. No dia 9 de fevereiro, o Supremo Tribunal concedeu à equipe de defesa de Lula da Silva acesso aos vazamentos.

Apesar de que há muito tempo sabe-se que Moro condenou Lula da Silva por atos indeterminados e baseado em acusações frouxas, sabemos agora que o próprio Moro ajudou a montar a acusação contra Lula da Silva, violando assim o princípio legal do sistema judiciário brasileiro de não ser juiz e parte ao mesmo tempo.

Quando os advogados de Lula da Silva queixaram-se de terem sido ilegalmente espionados pela Operação Lava Jato, estes garantiram que era um erro. Hoje sabemos que os procuradores eram periodicamente informados pelos agentes da Polícia Federal responsáveis pela escuta telefônica, o que ajudou a acusação a elaborar estratégias que levariam à condenação de Lula da Silva.

Moro gabava-se do dinheiro que voltou para os cofres públicos, mas não mencionou que metade do valor das multas que o Departamento de Justiça dos EUA impôs à Petrobras e à Odebrecht foi para uma fundação de direito privado gerida pelos procuradores da Lava Jato e diretores de ONGs. Ao fazê-lo, os procuradores desrespeitaram a Constituição Federal brasileira, já que esses fundos deveriam ser alocados ao orçamento público. Como consequência, o Supremo Tribunal suspendeu a fundação em 2019.

Vai demorar até que todos os detalhes da operação sejam revelados, mas o que sabemos é que, para combater a corrupção, o nosso herói Moro usou métodos que flagrantemente violam o Estado de direito. Como recompensa, foi-lhe entregue o cargo de ministro da Justiça e Segurança Pública.

Isto não significa necessariamente que não haja uma forma eficaz de combater a corrupção. De fato, há muito que podemos aprender com a experiência brasileira.

Durante os mandatos de Lula da Silva, o sistema judiciário brasileiro passou por um profundo processo de reforma que aumentou o financiamento e os recursos, criou jurisdições específicas para combater a lavagem de dinheiro, e aumentou a cooperação entre as agências para seguir o dinheiro e caçar criminosos de colarinho branco.

Moro e os membros da investigação foram capacitados para agir decisivamente e obter resultados; isso incomodou Bolsonaro, que fez todo o possível para reverter essas políticas. O problema é que Moro e os procuradores subverteram estes avanços institucionais — incluindo a sua independência do poder público — transformando uma simples e temporária força-tarefa em uma entidade acima da lei a serviço de um objetivo político, inicialmente contando com o apoio dos tribunais superiores.

Moro, que renunciou ao seu cargo ministerial em abril de 2020, deixou claro durante sua permanência na magistratura e no Executivo que, como seu antigo chefe, ele acredita que a democracia e o Estado de Direito podem ser postos de lado em nome da luta contra a corrupção. E mesmo esta afirmação pode ser contestada agora que Moro, em um claro conflito de interesses, trabalha para um escritório de advocacia contratado pela Odebrecht.

Para pôr fim à relação promíscua entre dinheiro e política — o problema subjacente revelado pela operação, e sua principal realização — não é suficiente julgar e prender. As empresas faliram e o país foi colocado em um turbilhão, mas mesmo depois de centenas de prisões, a corrupção não diminuiu.

A democracia brasileira está em perigo. Para mudar isso, é necessário ir além da acusação e instituir uma verdadeira reforma política que possa ajudar a resolver a raiz do problema, atacando o financiamento ilícito de campanhas políticas. É igualmente necessário introduzir instrumentos mais eficazes de responsabilização no sistema judicial, a fim de evitar casos como a operação Lava Jato, que teve proteção institucional mesmo após ter se tornado claro que delitos haviam sido cometidos desde as fases iniciais da investigação.

A operação Lava Jato acabou, mas a sua história ainda não foi totalmente contada. Para que o Brasil enfrente suas múltiplas crises, para realmente atacar a corrupção e superar esta distopia, deve haver uma reavaliação crítica da investigação.

Gaspard Estrada (@Gaspard_Estrada) é o diretor executivo do Observatório Político da América Latina e Caribe da Sciences Po, em Paris.

NY Times