Amorim: “O problema no Brasil é que não se sabe ao certo quem governa”
O mundo atravessa uma emergência sanitária global pela pandemia do novo coronavírus e, neste contexto, o Brasil é o país mais afetado da América do Sul e um foco de risco e preocupação para a região devido à falta de políticas por parte do governo de Jair Bolsonaro. Além disso, esta situação provocou uma grave crise política que ameaça a estabilidade do próprio presidente. Em conversa com a Letra P, o ex-chanceler Celso Amorim, quadro do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, avaliou que a resposta mundial à pandemia é “muito improvisada” e tem “muitos pontos que deixam a desejar”. Também criticou a gestão do mandatário brasileiro e assegurou: “O problema não é se o governo é bom ou mau, mas que não se sabe ao certo quem governa”. Ademais, mostrou-se agradecido a Alberto Fernández pelo seu apoio à libertação do líder do PT e falou sobre as eleições municipais do fim do ano.
Como analisa a resposta do mundo à pandemia?
Muito improvisada, com muitos pontos que deixam a desejar. Não há um esforço para organizar a cooperação internacional. Isso é muito difícil em uma situação deste tipo, porque todos querem a sua parte primeiro, não apenas “a America First”. Também há uma falha em não reforçar o papel da Organização Mundial da Saúde (OMS). Eu participei de uma comissão criada pelo (então) secretário-geral da ONU, Ban Ki-Moon sobre o ebola, em 2015. Fizemos duas recomendações importantes: uma delas foi fortalecer os sistemas de saúde nacionais e não foi feito praticamente nada; a outra, reforçar a OMS com quadros, orçamento e capacidade operacional, e também não se fez nada.
A falta de cooperação sobre a qual está falando coloca em evidência a crise do multilateralismo?
O multilateralismo já estava em crise. O que conhecemos após a Segunda Guerra Mundial foi, sobretudo, uma criação dos estadunidenses. Eles mesmos o criaram e eles mesmos o violaram, mas nunca haviam abandonado, nem governos republicanos, nem democratas. Com (Donald) Trump é a primeira vez que os Estados Unidos não tem um projeto para o mundo; o projeto é apenas a America First. Isto tem um custo. Agora, temos uma dificuldade muito grande para organizar a cooperação internacional. Haverá muitas reações domésticas a médio e longo prazo – espero não estarmos mortos -, haverá uma consciência de que será necessário desenvolver a cooperação internacional. Isto não vai ocorrer nos mesmos termos das épocas passadas, nos termos traçados pelas grandes potências ocidentais, mas por outra grande potência em ascensão: a China. O Brasil está muito mal posicionado, porque nos últimos três anos tivemos uma antidiplomacia. Copiamos o “America First” sem ter o poder que os Estados Unidos tem.
Como vê a resposta do governo de Bolsonaro à crise do Covid-19?
O Brasil é talvez o único grande país do mundo onde a crise sanitária se sobrepõe à uma crise econômica e à uma enorme incerteza política, porque o problema não é se o governo é bom ou mau, o problema é que não se sabe ao certo quem governa. Não se sabe por que Bolsonaro diz uma coisa e seus ministros dizem o oposto. Isto é muito estranho e cria uma confusão na população que é muito lamentável. Não existe uma liderança clara e racional como em outros países. No Brasil, o desprezo pela ciência e pelas opiniões dos órgãos internacionais é um problema que agrava a situação.
Alguns meios de comunicação e políticos já pedem a destituição ou a renúncia de Bolsonaro. Acha possível uma saída antecipada do presidente?
Tudo é tão impredizível que é difícil saber o que vai acontecer. Nos últimos dias dizia-se que Bolsonaro iria demitir seu ministro da Saúde (Luiz Mandetta) e não ocorreu; mas parece que o ministro saiu fortalecido com o apoio dos militares. Gostando ou não, quando a população foi consultada, ainda que eu não saiba se as pesquisas são confiáveis, quase 60% declarou ser contra a sua renúncia. Bolsonaro renunciaria apenas se fosse forçado a fazê-lo por uma combinação de forças. Por agora, os militares e uma grande parte da população não querem que ele saia e preferem controlar os seus excessos. Todavia, ele possui cerca de 30% de apoio. Portanto, ele tem uma legitimidade que os militares, por exemplo, não têm. O mais provável é que continue como uma espécie de porta-voz para se manter no poder e que algumas forças, como os militares e outras figuras, dirijam o governo de fato. É muito complicado.
Tendo em conta a libertação de Lula da Silva, qual é a situação do Partido dos Trabalhadores neste ano de eleições municipais?
Não sabemos como será o calendário eleitoral, há muita incerteza. A libertação de Lula, não a liberdade completa porque os processos contra ele seguem abertos, é muito importante. Somos muito gratos pela atitude de Alberto Fernández e da população argentina por isso. A situação atual é muito difícil, inclusive em termos de mobilização popular. A parte positiva é a busca de uma maior unidade entre os partidos de esquerda e o início de algum diálogo com outras forças mais ao centro, dentro da necessidade de criar um espaço mais forte. Isto é positivo para o médio prazo, mas não sei qual será o efeito. Neste momento, o importante é a saúde e a luta contra o vírus.